Entre notas e madeiras
O futuro da indústria de archetaria e da preservação do pau-brasil depende de um equilíbrio cuidadoso entre a preservação ambiental, a legalidade da produção e a continuidade do ofício de fabricar arcos de violino de alta qualidade
por Leandro Fidelis
em 08/06/2025 às 5h48
15 min de leitura

*Fotos: Leandro Fidelis
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A madeira que batizou o Brasil, por muito tempo símbolo da identidade nacional, está no centro de uma disputa global que envolve músicos, archetiers (fabricantes de arcos) e autoridades ambientais. O motivo é a restrição ao uso do pau-brasil — espécie nativa da Mata Atlântica considerada em risco de extinção — na fabricação de arcos de instrumentos de corda, como o violino. O comércio da madeira está, na prática, suspenso desde 2023, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) deixou de conceder novas licenças ambientais.
A paralisação ocorreu após o endurecimento da fiscalização, especialmente após a Operação Dó-Ré-Mi. Deflagrada em 2022 em colaboração com a Polícia Federal, desmantelou uma quadrilha especializada em extrair e exportar ilegalmente o pau-brasil, incluindo o norte capixaba. Na ocasião, foram apreendidas 42 mil varetas e 150 toretes avaliados em R$ 2 milhões. Estima-se que a atividade criminosa tenha movimentado mais de R$ 230 milhões. No ano ado, novas ações elevaram o total das multas aplicadas a R$ 23 milhões.
A medida gerou forte impacto no Espírito Santo, o maior polo exportador de arcos de pau-brasil no país e onde a espécie é endêmica da região litorânea. Com a decisão, os fabricantes capixabas, que tradicionalmente utilizam a madeira nobre nos arcos, agora enfrentam incertezas regulatórias e desafios comerciais. Em busca de alternativas sustentáveis, empresas e artesãos do setor iniciaram testes com outras madeiras, sendo o ipê uma das principais apostas. Apesar de não possuir exatamente as mesmas qualidades acústicas e de flexibilidade do pau-brasil, o ipê tem demonstrado desempenho promissor. A transição busca equilibrar a viabilidade econômica da indústria com o compromisso ambiental, evitando o risco de paralisação do setor e fomentando a inovação em meio à crise.
Segundo o pesquisador da Embrapa Florestas e do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), Pedro Arlindo Galvêas, a indústria de arquearia do Espírito Santo está praticamente parada desde 2021. “Isso se deve à ausência da licença necessária (LPCO), que impossibilita o o ao sistema oficial de exportações, o Siscomex. A justificativa dos órgãos ambientais é a dificuldade em rastrear a origem da madeira e separar o material legal do ilegal”. O pesquisador observa, no entanto, que “essas restrições só se aplicam à indústria brasileira. Em feiras internacionais, a madeira do pau-brasil continua sendo vendida livremente por fornecedores estrangeiros”.
Esse desequilíbrio vem afetando diretamente os pequenos negócios capixabas. Das 40 micro e pequenas empresas de arquearia do Estado, apenas quatro continuam operando. Dos cerca de 200 artesãos especializados em arcos, muitos abandonaram a atividade ou migraram para o exterior. “Hoje, só cerca de 20 archetiers ainda produzem arcos e com madeiras de qualidade inferior”, lamenta Galvêas.
Resiliência
Embora a madeira de ipê tenha características físicas favoráveis, como densidade e rigidez, ela ainda não conseguiu alcançar a performance do pau-brasil para a produção de arcos de violino de alta qualidade. Sócio-fundador da Arcos Brasil, localizada em Guaraná, distrito de Aracruz, Celso de Mello explica que, apesar dos esforços, o arco de ipê ainda precisa competir com o prestígio do produto de pau-brasil, especialmente em mercados exigentes como o da Alemanha. “Ainda estamos tentando recuperar o mercado antes dominado pelo pau-brasil, e a aceitação do ipê no lugar dele está sendo mais lenta do que gostaríamos”.
Com quase 30 anos de história, a empresa lidera a produção de arcos no Estado, mas enfrentou grandes desafios quando as regulamentações começaram a se intensificar. “O mercado internacional ainda não acredita totalmente que o ipê seja uma alternativa viável. Estamos tentando provar seu valor, mas é um processo longo e desafiador”.
O ipê, já dentro do sistema de rastreamento e controle de madeira legalizada, como o Documento de Origem Florestal (DOF), permite aos fabricantes mais segurança em relação à legalidade da produção. A Arcos Brasil, por exemplo, comprou um lote de 26 mil m³ de ipê do Pará, com o qual está fabricando para exportação. O processo de rastreamento permite garantir que a madeira utilizada não tenha sido extraída ilegalmente e que todo o processo de produção esteja de acordo com as normas ambientais.
Paula Maciel, organizadora da Feira Espírito Madeira – Design de Origem, fala sobre as dificuldades enfrentadas pelo setor. “Hoje, os arcos de violino não estão mais sendo produzidos com o pau-brasil, mas com outras madeiras como o ipê. E o Espírito Santo, que foi líder em exportações até 2024, precisou ar por essa crise de insumo. A crise, no entanto, trouxe à tona a necessidade de refletir sobre o manejo sustentável das florestas de pau-brasil”.
Segundo Paula, eventos como a Espírito Madeira, com próxima edição de 11 a 13 de setembro, em Venda Nova do Imigrante, são importantes para dar visibilidade ao debate sobre as alternativas sustentáveis para a indústria de arquearia. “A discussão sobre o reflorestamento do pau-brasil e o manejo responsável da espécie precisa ser mais robusta e debatida no cenário internacional. Ainda é possível usar o pau-brasil de maneira sustentável, mas precisamos de políticas públicas que incentivem essa prática”, afirma.

*Fotos: Divulgação
Regulamentação
Em março deste ano, o presidente da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima), Daniel Neves, divulgou relatório sobre a situação dos arcos de pau-brasil. A pesquisa abordou os desafios enfrentados pelos fabricantes e exportadores que, além das dificuldades com a burocracia de licenciamento, também enfrentam uma incerteza regulatória que dificulta o planejamento de longo prazo. Além disso, músicos que viajam com arcos de pau-brasil precisam comprovar a legalidade do material, o que gera mais complicações. “Até fevereiro de 2023, arcos finalizados podiam circular livremente, mas agora se foi exportado do Brasil após essa data, é preciso comprovar a legalidade”, explica.
A nova regulamentação tem como objetivo combater a extração ilegal de pau-brasil e garantir que a madeira utilizada para fabricar arcos seja rastreável. No entanto, especialistas alertam para os perigos de restrições excessivas, que poderiam estimular a formação de mercados paralelos para o comércio clandestino da madeira. A busca por um equilíbrio entre a proteção ambiental e a viabilidade da indústria de arquearia é crucial para o futuro do setor.
Para o violinista Diego Adinolfi (foto abaixo), spalla* da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses), a diferença entre o pau-brasil e outras madeiras, como o ipê, é perceptível tanto na sonoridade quanto na resposta tátil durante a execução musical. “Muda o som, a firmeza do ar. O arco com pau-brasil é bem mais firme, tem mais vibração. O instrumento soa mais. Também tenho arco de ipê, que para mim é o mais próximo do pau-brasil, mas a diferença é gritante”.
Adinolfi, que começou a tocar aos sete anos e já se apresentou nos Estados Unidos, Itália e Vaticano, também destaca o orgulho que sente ao tocar com arcos produzidos com madeiras brasileiras. “Já me peguei várias vezes pensando na origem do arco. Ainda mais porque sou do Espírito Santo, onde está concentrada uma das maiores quantidades de pau-brasil e de ipê no país. E saber que o arco é feito de uma madeira nativa do meu país me deixa muito orgulhoso”.

Archetier- Palavra sa para “arco de violino” ou “archetista”, que se refere a alguém que faz ou repara arcos de violino, viola, violoncelo, entre outros instrumentos de corda friccionados. A palavra serve para descrever tanto o profissional que constrói e repara arcos, como também faz referência ao próprio arco em si.
Spalla – Em música, spalla (do italiano “ombro” ou “braço direito”) é o nome dado ao primeiro violino de uma orquestra. O spalla desempenha um papel crucial, sendo responsável por estabelecer o ritmo e a afinação da orquestra, além de executar solos e auxiliar o maestro. (*Foto: Lorenzo Sarvegnini)
Substituição
O uso do ipê, apesar de ser uma alternativa legal e sustentável, ainda enfrenta desafios de aceitação. Por ser mais densa e menos elástica que o pau-brasil, a madeira não possui as mesmas propriedades acústicas que fazem o pau-brasil ser considerado a melhor opção para a fabricação de arcos de violino de alta qualidade. No entanto, um estudo realizado pelo pesquisador Igor Mottinha Fomin, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), apontou que o ipê é tecnicamente apto para a produção de arcos profissionais.
Durante o estudo, os arcos de ipê foram testados por 16 violinistas profissionais, que avaliaram seu desempenho técnico em comparação com os feitos de pau-brasil. A pesquisa concluiu que o ipê apresenta os requisitos necessários para a fabricação de arcos de violino, embora alguns músicos ainda prefiram os arcos de pau-brasil. O experimento também revelou que as propriedades físicas da madeira de ipê, como a densidade e a velocidade de propagação sonora, influenciam a percepção dos músicos em relação ao desempenho do arco.
O fato de que o ipê pode ser uma alternativa viável para a indústria de arquearia não significa que o pau-brasil deva ser completamente descartado. Especialistas sugerem que o manejo sustentável do pau-brasil, através do reflorestamento e de práticas agrícolas responsáveis, pode garantir a continuidade da utilização dessa madeira sem comprometer a preservação da espécie, como veremos a seguir.
Pau-brasil une conservação, renda e educação no Espírito Santo
A legislação permite que o pau-brasil seja plantado e explorado economicamente em áreas de reserva legal — diferentemente das APPs, onde a exploração econômica é proibida
O pau-brasil ressurge como protagonista de uma estratégia que une conservação ambiental, geração de renda e valorização cultural no Espírito Santo. A madeira, historicamente apreciada pela excelência na fabricação de arcos de violino, só pode ser explorada legalmente quando proveniente de plantios sustentáveis, conforme determina o Código Florestal Brasileiro. “O pau-brasil tem madeira nobre e pode ser utilizado legalmente, desde que proveniente de plantios sustentáveis, inclusive em áreas de reserva legal. Isso permite ao produtor atender à legislação e ainda gerar renda”, afirma o secretário de Estado da Agricultura, Enio Bergoli.
Mais Conexão Safra
A legislação permite que o pau-brasil seja plantado e explorado economicamente em áreas de reserva legal — diferentemente das Áreas de Preservação Permanente (APPs), onde a exploração econômica é proibida. “É importante diferenciar reserva legal de APP. Nas reservas legais, é permitido plantar e explorar economicamente espécies nativas como o pau-brasil, desde que com manejo sustentável. Já nas APPs, qualquer exploração econômica é vedada”, explica.
Isso representa uma oportunidade significativa, sobretudo em um contexto em que propriedades acima de quatro módulos fiscais já encerraram o prazo de inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e têm 20 anos para regularizar ivos ambientais. Já os pequenos agricultores familiares, com até quatro módulos fiscais, têm até o dia 31 de dezembro deste ano para se inscreverem no CAR, ando também a ter 20 anos para a recuperação dos ivos a partir de 2026.
O potencial do pau-brasil vai além do valor madeireiro. A árvore tem se mostrado altamente eficiente como quebra-vento na cafeicultura, atividade econômica central no meio rural capixaba, com testes bem-sucedidos em Joassuba, zona rural de Ecoporanga, no noroeste capixaba. Além do valor econômico e ambiental, a árvore também contribui para o aumento da disponibilidade de nitrogênio no solo, nutriente fundamental para o desenvolvimento das culturas agrícolas.
“O pau-brasil se adapta muito bem em regiões de diferentes altitudes, como Pedra Azul ou Aracruz. Pode ser uma excelente alternativa para formar renques de quebra-ventos na cafeicultura, ajudando a proteger as lavouras e aumentar a produtividade. É uma solução que une conservação ambiental com benefício direto ao produtor rural”, enfatiza Bergoli.
O pau-brasil também tem sido explorado no cultivo de cacau por meio do sistema agroflorestal conhecido como cabruca, já praticado na Bahia.

*Foto: AssCom Seag
Restauração
O valor simbólico e educativo do pau-brasil também tem motivado ações de plantio em áreas urbanas e espaços públicos. O doutor em Ciência Florestal e ambientalista Luiz Fernando Schettino defende a presença da espécie em escolas, praças e parques. Para Schettino, projetos como o realizado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) no Bosque do Ibirapitanga, em Vitória, demonstram o potencial do pau-brasil como ferramenta pedagógica e restauradora.
Além da importância ecológica, a espécie contribui para a biodiversidade ao atrair polinizadores como abelhas e borboletas, abrigar aves e pequenos mamíferos e favorecer a regeneração do solo. “O plantio do pau-brasil em espaços públicos e propriedades rurais é uma chance de fortalecer a identidade ecológica e cultural do Espírito Santo, ao mesmo tempo em que promove educação ambiental e recuperação florestal”, afirma o ambientalista.
Com planejamento adequado, o plantio de pau-brasil pode ser parte estratégica da restauração florestal em áreas degradadas, contribuindo para a proteção de nascentes, melhoria da qualidade do solo e da água, e aumento da cobertura vegetal nativa.
O esforço para preservar o pau-brasil não se limita ao reflorestamento. O pesquisador Pedro Galvêas (Embrapa Florestas e Incaper) alerta que, embora a espécie em geral não esteja em risco de extinção, algumas variações genéticas necessitam de preservação urgente. “Isso é fundamental para garantir a diversidade e a resiliência da árvore, que, como símbolo do Brasil, precisa ser protegida para as futuras gerações”.
Desafios e oportunidades na indústria e conservação ambiental
Galvêas destaca a importância do uso de espécies nativas no reflorestamento sustentável. Em estudo realizado com outros especialistas, ele analisou os benefícios de sistemas agroflorestais que integram produção agrícola e conservação ambiental. “O pau-brasil, além de seu valor econômico, pode ser uma excelente alternativa para a recuperação da Mata Atlântica, principalmente em áreas de sombreamento”, ressalta. Ele também destaca a seringueira como espécie complementar, pela alta capacidade de reciclagem de carbono e adaptação a essas condições.
Os conhecimentos vêm sendo aplicados pela Secretaria de Estado da Agricultura (Seag) por meio do Programa de Desenvolvimento Florestal, que inclui a distribuição de mudas de pau-brasil para produtores rurais. Somente neste ano, mais de 30 mil mudas foram entregues, utilizadas em recuperação de áreas degradadas, arborização urbana, formação de quebra-ventos em lavouras de café e plantios comerciais. No total, o programa de fomento já distribuiu cerca de 350 mil mudas em duas décadas. No entanto, o pesquisador da Embrapa Florestas alerta que “as recentes restrições à comercialização da madeira estão desestimulando os produtores que participaram do fomento desde o início. Temos casos de assentados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) profundamente frustrados por esperarem duas décadas e que agora não têm como vender o produto”.
Até o ano 2000, a extração do pau-brasil era regulada principalmente pelos Códigos Florestais do século 20 e, anteriormente, por normas da Coroa Portuguesa, como a exigência de autorização para exploração em 1799. A partir dos anos 2000, com o surgimento de uma indústria de arquearia sustentável no Espírito Santo, começaram a surgir diversas novas normas nacionais e internacionais. Mais de uma dezena de decisões e restrições ambientais — de leis a diretrizes da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites) e da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) — aram a incidir sobre o setor.
Dois relatórios técnicos recentes reforçam a viabilidade da exploração sustentável do pau-brasil. Estudos divulgados em 2025 por especialistas internacionais concluíram que os estoques de plantios comerciais existentes no Espírito Santo e na Bahia são suficientes para atender à demanda atual do mercado.

O pesquisador Pedro Galvêas diante de
um exemplar de pau-brasil em Ibiraçu.

Pau-brasil servindo de quebra-vento para
lavoura de café em Joassuba (Ecoporanga).
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